Por ocasião do sexagésimo aniversário da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, o grupo PET entrevistou o Dr. Dalgimar B. de Menezes, Patologista do Departamento de Medicina Legal da UFC. Através do texto POUCO FALAR, confira o que nosso grande professor pensa e tem a dizer sobre o assunto.
POUCO FALAR
Dalgimar B. de Menezes – Patologista do DPML UFC
Uma entrevista concedida a José Américo, elemento do PET
José Américo: É verdade, doutor, que você fez uma cirurgia de câncer de esôfago?
Dalgimar: É verdade, sim, João (ou José). Fui operado através de cirurgia espiritual pelo Dr. Lino Antônio Cavalcanti Holanda, que é o melhor cirurgião espiritual do Ceará.
José Américo: Dr. Dalgimar, a inquietude estudantil de agora é semelhante à de quando você entrou na Faculdade de Medicina?
Dalgimar: Minha inquietude termina quando chego. Arribei às sombras tranqüilas das Mangueiras em 1962, advindo do Liceu do Ceará. Fui ficando. Não por prazer, não por satisfação, dir-se-ia por inércia. Nos meios políticos estudantis daí a pouco rebentaria a greve do terço. O terço era o seguinte: todos tinham de rezar um terço... não era nada disso, isso é coisa de hoje, era designadamente: os estudantes pleiteavam representação de um terço em todos os colegiados da Universidade. Era isso que era o terço. No Diretório Acadêmico, que ora se chama de Centro Acadêmico, jazente debaixo do prédio da Morfologia, pontificava o Moreira Lima, líder da greve. Cedo, cedinho eu me achava aos umbrais da clandestinidade, no Partido Comunista Brasileiro, depois no Partido Comunista do Brasil; nosso mentor se chamava Walton de Miranda Leitão. Foi um passo para os túneis da clandestinidade que adentramos em 1964. Quem vive numa sociedade semi-aberta, como a de hoje, não entenderia o misto de medo e de prazer que é conferido pela clandestinidade. Jovens combatentes por uma sociedade mais justa, eis-nos... Eis-me, conspirador de primeira água... Luís Carlos Prestes, Ernesto Che Guevara. Robin Hood, Lampião, Sitting Bull... No dia do meu aniversário, em 1967, quando do meu bota fora da Faculdade de Medicina, bota fora inútil, pois fui ficando até hoje, Che foi trucidado na Bolívia. El nombre del hombre muerto, Caetano Veloso passou a cantar. A guerra continua na cordilheira.
José Américo: Como você entrou na Faculdade quando esta celebrava seus 14 anos, gostaria de saber: você teve oportunidade de conhecer seus fundadores?
Dalgimar: Conheci e tive algum pouquíssimo trato com os que propaladamente fundaram a Faculdade de Medicina das Mangueiras. Os cinco do retrato famoso. 1 — Prof. Waldemar de Alcântara, proferiu para a minha turma uma aula sobre Raiva. A sala, não sei se mais existe, pelo menos não sei chegar lá (muita coisa se tornou labiríntica, e há a tal história do alemão, olha o alemão, José!), ficava numa dependência do prédio central, o HUWC, junto ao Isolamento, ao qual a gente acessava pelo quê os estudantes chamavam de "corredor da morte", lá iam morrer os tetânicos e outros desafortunados. Raiva ainda existe, mormente a transmitida pelos sagüis (soins); há poucos dias (2008) houve um caso, necropsiado no SVO. Quem o necropsiou? O Luciano Monteiro, último residente do Departamento de Patologia, o último dos moicanos, pois a residência se extinguiu. O Isolamento se expandiu em Hospital São José de Doenças Infecciosas, onde pontifica nosso grande Anastácio Queiroz. No prédio do São José funcionou por uns anos o Cursinho XII de Maio, de que fui professor de inglês até 1967, quando naturalmente tive de sair da Faculdade de Medicina, mas não saí, fiquei. 2 — Jurandir Picanço, que ensinava endocrinologia, dentre outras matérias, e organizou os primeiros cursos de Ética Médica.
Eis, à guisa de bibliografia os que fiz: III Semana de Deontologia Médica, sob os auspícios do Diretório Acadêmico XII de Maio, de 18 a 25 de setembro de 1962; Curso de Deontologia Médica, de novo sob os auspícios do Diretório Acadêmico XII de Maio, Faculdade de Medicina da Universidade do Ceará, de 4 a 14 de maio de 1964. Maio de 64, um mês de ditadura. Incidentalmente, o prof. Jurandir, fundador de nossa escola, tem parentesco com o fundador da primeira Faculdade de Medicina do Brasil, a da Bahia, em 1808. Em fevereiro participei, em Salvador, das celebrações dos 200 anos dessas escola...
Cá um parêntese para as datas. A nossa (?) faculdade surgiu 140 anos depois, quando eu tinha cinco (5) anos de idade, em 1948. Já não se sabe bem o número das existentes hoje, em 2008, elas estão a proliferar como células neoplásticas.
José Américo: Ouvi inclusive que já pleiteiam a abertura de cursos noturnos de Medicina.
Dalgimar: Ah bom. Pois é. Estivemos fazendo as contas outro dia, eu e um camarada meu, de quanto tempo gastariam os interessados num tal curso para cumprimento da carga horária exigida. Chegamos à conclusão de que levariam dezoito anos. Mas você sabe, João, tudo se ajeita neste país e acabariam mesmo nos seis anos costumeiros.... Fechando o parêntese: 3 — José Carlos da Costa Ribeiro, que deu aulas à minha turma no nosocômio hoje chamado de Hospital Geral Dr. César Cals, ele, à semelhança de Jurandir, da tradição de pioneiros, pois seu pai, Carlos Ribeiro, foi um dos fundadores do Centro Médico Cearense, em 1913. Não sei exatamente minha idade nesse ano, tendo em mente que pretensiosamente tenho a idade da cultura ocidental. Não há mais Centro Médico, hoje se chama de Associação Médica Cearense. O professor José Carlos é, nesse ponto de vista de pioneirismo, o número 1 do Conselho Regional de Medicina, eu, o 880, e esses números são para sempre. Pertenceu ao Departamento de Patologia e Medicina Legal; 4 – Prof. Newton Gonçalves, de quem fui interno no Departamento de Cirurgia. Era toda uma vocação cultural e erudita. Conseguiu durante algum tempo dar umas aulas de alemão, curso fundado por ele, disposição dele, no Departamento de Patologia; acho que houve poucas aulas porque poucos se interessavam por aula de alemão. Essa inclinação germanófila, ou germanofônica o liga à tradição de Tobias Barreto de Menezes, fundador da chamada Escola do Recife, de que a última grande figura foi Gilberto Freyre. Porém, poucos dias depois da morte de Che, em 1967, pedi audiência a ele. Era tido como homem da esquerda, eu queria saber o que pensava da morte do Che. De sua voz, sempre mansa, me disse, me deixando desencantado: Che era apenas um aventureiro latino-americano. De minha parte, eu nada mais disse, e a audiência terminou. Conformei-me e fui, como seu interno, vê-lo cirurgião numa tireoidectomia... Eu não tenho coragem nenhuma...
José Américo: E ele era bom em tireoidectomia, doutor?
Dalimar: Você, Zezo, devia era perguntar pelo quinto personagem e não ficar aí fazendo perguntas impertinentes, ou como diz minha mãe, dona Aldenora, 85, impertenente.
... Não tenho coragem nenhuma, sou um frouxo, não tenho a têmpera do Chico Monteiro ou da Helena Serra Azul Monteiro ou do Dower Morais, mas o gosto pela clandestinidade e um determinado senso de justiça não se me faltarão nunca. É claro, logo depois do fim do curso, quando me convidaram para ir ao Araguaia, arrepiei caminho. E vamos ao número 5 (cinco), ao quinto protagonista fundador da Faculdade. Quando, em 1994, fiz o roteiro e dirigi (ai, ai, ai), juntamente com Vanuza Chagas Gonçalves, um filme sobre os 46 anos da Faculdade de Medicina, ainda conseguimos imagens dos professores José Carlos Ribeiro e Walter Cantídio, este o quinto (5), (mas claro, esta ordem nossa não conota hierarquia de valores...) com a ajuda do professor Elias Boutala Salomão. Hoje todos dormem profundamente. Como os ancestrais e os afetos de Manuel Bandeira: Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/Minha avó/Meu avô/Totônio RodriguesTomásia/Rosa/Onde estão todos eles?/— Estão todos dormindo/Estão todos deitados/Dormindo/Profundamente.
José Américo: E as mangueiras da Faculdade? Há recordações e memórias do nosso campus?
Dalgimar: Fiquei debaixo das mangueiras a perscrutar o mundo, até fiz, juntamente com o Paulo Roberto uma musiquinha para elas. E estou perdido. Antes havia o Instituto Andréas Vesalius – em Sobral tentaram modificar o nome do famoso anatomista para Versalius, mas parece que se corrigiram os eruditos de lá e os daqui; pois bem, havia o Instituto Evandro Chagas, havia... Hoje há um monte de siglas e nelas me perco. Não sei para que servem, se para facilitar, para confundir ou para embruxar o mundo.
José Américo: Como era o campus na época?
Dalgimar: Quando cheguei, em 1962, havia uns cinco carrinhos parados, estacionados, guardando distância uns dos outros, como que uns com medo dos outros. E havia silêncio. Um campus de verdade não suporta a barulheira. A criação, até mesma a musical, a aprendizagem, o aprendizado, exigem silêncio. Durante algumas atividades atualmente, tento a abstração do barulho e ouço os bem-te-vis, os bentevis das mangueiras, ah os bem-te-vis, com seus sonidos imemoriais. Dá vontade de dizer, povo, meu povo, senhores e senhoras, eu vou me mandar, aprendam tudo isso mesmo sozinhos, que é para isso mesmo, para o individualismo, que o mundo está sendo forjado e conduzido. Vou sair e ouvir os bem-te-vis.
Posso fazer isso plenamente, como um dia o fez o filósofo George Santayana... ou foi o Benedetto Croce ... Deve de ter sido o Santayana, na Universidade de Harvard ou foi na Califórnia, Berkeley, a memória muita vez falha... Olha o alemão, José, o Alois. Mas foi um dos dois, numa das duas universidades, que um dia abandonou um grupo meio barulhento de estudantes e disse: Fiquem aí, vou ver a natureza. Vou ouvir os pássaros lá fora. Ora, direis...
José Américo: E o senhor tem a intenção de sair, de se aposentar?
Dalgimar: Não vou dar esse gostinho de sumir; as mênades terão de devorar Dioniso.
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José Américo: Professor, um sinônimo de mênades?
Dalgimar: Te vira, prá que serve a net?
Entrevista realizada em 23 de abril de 2008, no Departamento de Patologia e Medicina Legal.
Disponível em http://www.fisfar.ufc.br/petmedicina/index.php?option=com_content&task=view&id=152&Itemid=2.
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