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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Tragédia da TAM: one year later

Nada se encaixa melhor no contexto daquele incidente do que o poema "Morte no Avião", escrito por Carlos Drummond de Andrade, há mais de sessenta anos. O poeta refletia bastante sobre a fugacidade da vida em sua obra. O texto me foi apresentado em uma aula de tanatologia na faculdade no semestre passado e logo me fez lembrar do acidente em São Paulo com o avião da TAM, há um ano, e daquele acidente com o avião da Gol, por conta de uma colisão com um jato norte-americano sobre uma floresta, em setembro de 2006. Não foram meras fatalidades. Foram episódios desastrosos que podiam ter sido evitados, se não fosse pela falta de consideração, de dedicação, de responsabilidade e de cuidado de alguém. Como pode haver dois acidentes aéreos assim em um país em menos de um ano??? Seguiram-se greves de controladores de vôo, atrasos nos aeroportos e o medo nas pessoas que voam com freqüência.

Nada mais revoltante do que ter algo arrancado de você tão repentina, dolorosa e tragicamente que você nada pode fazer para impedir, não é? E ainda não há ao menos 50% de garantia de que isso não vai voltar a acontecer. Pouca gente deve estar se esforçando para prevenir. Então, sugiro que rezemos por nossos irmãos que "partiram" naquele episódio ou em situações similares e por seus familiares. E por nós mesmos, que não estamos livres.

Agora vamos ao poema do glorioso CDA. Um poema que narra o último dia de vida de um passageiro de um vôo noturno de uma companhia aérea qualquer, em um aeroporto qualquer, em qualquer época, mas podia ter sido hoje. Poderia ter sido o último dia de uma daquelas pessoas que morreram no Aeroporto de Congonhas, ano passado. Você não vai se arrepender de me dar dois dedinhos de atenção na leitura deste texto. Se quiser ouvi-lo declamado, acesse http://www.rhaiza.com.br/drummond_14.htm. Se quer ver um comentário sobre este e outros poemas do autor, acesse http://educaterra.terra.com.br/literatura/livrodomes/2002/12/27/002.htm ou http://www.casaeuclidiana.org.br/texto/ler.asp?Id=1445&Secao=120.

Antes, confira, no portal UOL, matéria especial sobre a tragédia em http://noticias.uol.com.br/especiais/1-ano-acidente-airbus-tam/.


Acordo para a morte.

Barbeio-me, visto-me, calço-me.

É meu último dia: um dia

cortado de nenhum pressentimento.

Tudo funciona como sempre.

Saio para a rua. Vou morrer.


Não morrerei agora. Um dia

inteiro se desata à minha frente.

Um dia como é longo. Quantos passos

na rua que atravesso. E quantas coisas

que há no tempo, acumuladas. Sem reparar,

sigo meu caminho. Muitas faces

comprimem-se no caderno de notas.


Visito o banco. Para que

esse dinheiro azul se alguma horas

mais, vem a polícia retirá-lo

do que foi meu peito e está aberto?

Mas não me vejo cortado e ensangüentado.

Estou limpo, claro, nítido, estival.

Não obstante, caminho para a morte.

Passo nos escritórios. Nos espelhos.

Nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas

que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.

Não me despeço, de nada sei, não temo;

a morte dissimula

seu bafo e sua tática.


Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme.

É meu último peixe em meu último

garfo. A boca distingue, escolhe, julga,

absorve. Passa música no doce, um arrepio

de violino ou vento, não sei. Não é a morte.

É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.

Estou na cidade grande e sou um homem

na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.

Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés

que retinem xícaras e anedotas,

como não olho o muro do velho hospital

em sombra.

Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal.

É pressa, embora vá morrer.


O dia na sua metade já rota não me avisa

que começo também a acabar. Estou cansado.

Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.

A fatura. A carta. Faço mil coisas

que criarão outras mil aqui, além, nos Estados Unidos.

Comprometo-me ao extremo, combino encontros

a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,

minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.


Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,

a mão estende um comprimido, a água

afoga a menos que dor, a mosca,

o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,

como um jogador de futebol a morte engana,

como os caixeiros escolhe

meticulosa, entre doenças e desastres.


Ainda não é a morte, é a sombra

entre edifícios fatigados, pausa

entre duas corridas. Desfalece o comércio de atacado,

vão repousar os engenheiros,

os funcionários, os pedreiros.

Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,

mil outras profissões noturnas. A cidade

muda de mão, num golpe.


Volto à casa. De novo me limpo.

Que os cabelos se apresentem ordenados

e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.

A roupa sem pó. A mala sintética.

Fecho meu quarto. Fecho minha vida.

O elevador me fecha. Estou sereno.


Pela última vez miro a cidade.

Ainda posso desistir, adiar a morte,

não tomar este carro. Não seguir para.

Posso voltar, dizer: amigos,

esqueci um papel, não há viagem,

ir ao cassino, ler um livro.


Mas tomo o carro, indico o lugar

onde algo espera. O campo. Refletores.

Passo entre mármores, vidro, aço cromado.

Subo uma escada. Curvo-me. Penetro

no interior da morte.


A morte dispôs poltronas para o conforto

da espera. Aqui se encontram

os que vão morrer e não sabem.

Jornais, café, chiclets, algodão para o ouvido,

Pequenos serviços, cercam de delicadez

nossos corpos amarrados.

Vamos morrer, já não é apenas

meu fim particular e limitado,

somos vinte a ser destruídos,

morreremos vinte,

vinte nos espatifaremos, é agora.


Ou quase. Primeiro a morte particular,

restrita, silenciosa, do indivíduo.

Morro secretamente e sem dor,

para viver apenas como pedaço de vinte,

e me incorporo todos os pedaços

dos que igualmente vão perecendo calados.

Somos um em vinte, ramalhete

de sopros robustos prestes a desfazer-se.


E pairamos,

frigidamente pairamos sobre os negócios

e os amores da região.

Ruas de brinquedo se desmancham,

luzes se abafam, apenas

colchões de nuvens, morros se dissolvem.

Apenas

um tubo de frio roça meus ouvidos,

um tubo que se obtura; e dentro

da caixa iluminada e tépida vivemos

em conforto e solidão e calma e nada.


Vivo

meu instante final e é como

se vivesse há muitos anos

antes e depois de hoje,

uma contínua vida irrefreável,

onde não houvesse pausas; síncopes, sonos,

tão macia na noite é esta máquina

e tão facilmente ela corta

blocos cada vez maiores de ar.


Sou vinte na máquina

que suavemente respira,

entre placas estelares e remotos sopros de terra,

sinto-me natural a milhares de metros de altura,

nem ave nem mito,

guardo consciência de meus poderes,

e sem mistificação eu vôo,

sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,

ligado à terra pela memória

e pelo costume dos músculos,

carne em breve explodindo.


Ó brancura, serenidade sob a violência

da morte sem aviso prévio,

cautelosa, não obstante irreprimível

aproximação de um perigo atmosférico,

golpe vibrado no ar, lâmina de vento

no pescoço, raio

choque estrondo fulguração

rolamos pulverizados

caio verticalmente e me transformo em notícia.





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